DOIS CONTOS
São duas horas da manhã e eu não estou conseguindo dormir por conta dum causo que Não aconteceu, mas que poderia ter acontecido comigo, ou com qualquer outro garoto da minha época e da minha ITIÚBA. Se tivesse acontecido seria desse modo. De modo, que resolvi levantar e vim contar a você. Boa leitura.
Meu nome é Jeová. Jeová Justino de Jesus. Sou filho de pais pobres, nasci numa comunidade pobre, num município pobre, do Nordeste brasileiro. Pra ser mais preciso, em ITIÚ(BA), onde algumas famílias não tinham nem cama para as crianças. Elas tinham que dormir em esteiras, feitas com palha de licurizeiro. Os pais, dormiam em tarimbas (estrado feito com varas) com colchões de junco, a alimentação, então... E a situação na nossa casa (e nas outras também), não era diferente, não estava fácil. Um “tostão” que saísse, faria uma grande diferença em nosso orçamento. Na nossa comunidade, apenas seu Cazuza, não atravessava uma fase tão ruim. Era aposentado e nuns tempos que trabalhou no Paraná ganhou muito dinheiro, era econômico, economizou, de modos, que dificilmente ficava à deriva. Eu tinha o privilégio de ser seu amigo. Considerava ele como meu segundo pai. Não gostava de "protestantes", talvez fosse esse o motivo de me chamar Joãovazinho, em vez de Jeová, o meu verdadeiro nome, ou Jeovazinho, como todos me conheciam. De vez em quando me dava duzentos Réis, ou mais, ou menos, para minhas farras. Meu pai não ficava satisfeito com isso, pois nos ensinou a não pedir nada, a ninguém. Nada! Mas nesse caso, não era eu que pedia, era seu Cazuza que dava e com a maior boa vontade. Não sei se era generoso assim com outros garotos. Acho que não, porque nunca ouvi alguém comentar. E fora esses mimos para comigo, só abria aquela mão, pra saudar as pessoas. Basta cerrar os olhos para que eu o veja sentado ali no alpendre, o chapéu de couro no joelho, picando fumo, a palha de milho para o cigarro nos lábios, preparando o seu cigarro e a sua prosa peculiar. Mão fechada que era só tirava algumas cédulas de debaixo do colchão, se fosse para emprestar. E só emprestava com juro. Então é possível presumir qual seria a sua profissão se ele não tivesse nascido na roça, se não tivesse se criado pras bandas de lá, onde nem escola tinha, se não fosse naquela época, se... Se não fosse os "ses" seria diretor de banco. Pois bem, não era ainda o caos, mas... Nossa criação era pouca, as vaquinhas de leite, magrinhas, coitadas. A lavoura só produzia se chovesse e se chovesse, também as vaquinhas produziriam mais leite, se (de novo os "ses" ) produzissem mais leite, a produção de requeijão, seria maior e claro o dinheiro mesmo pouco, começaria a aparecer. Mas, como eu já disse, naquele ano e noutros anteriores a chuva, não quis nos visitar. E naquela semana, eu precisava de uns trocados, um dinheirinho bom. Pois era dezembro e no sábado dia oito, teria a festa de Nossa Senhora, padroeira da cidade. Toda a comunidade estaria presente, eu não poderia perder, mas não poderia ir sem dinheiro. Como poderia pagar refresco e arroz doce para as moças? E enquanto a moça tomasse seu refresco, eu puxaria conversa. E conversa vai, conversa vem, quem sabe não sairia um namoro. Eu já me achava na idade de namorar e vivia a muito tempo de olho em Juliana. Filha de quem? Do seu cazuza! Ela, uma menina muito bonita. E que correspondia ao meu olhar. Na festa eu teria a chance de chamá-la para uma conversa e quem sabe formalizar o namoro. Muito embora isso pudesse gerar uma inimizade entre nossas famílias. Fato muito comum naquela época, nas bandas de lá. Tia Luiza, costureira oficial da nossa comunidade, tinha costurado para mim uma roupa que me deixava com um aspecto de "rapaz". O trabalho dela ainda não tinha sido pago, mas ela não estava com a corda no pescoço, era compreensível, sabia da nossa situação de modo, que esperaria as coisas melhorarem. Sapato eu iria usar o do meu irmão, que estava com "dordolho", não poderia ir. Embora meu pé fosse menor, isso não me incomodava, muito pelo contrario, pois fazia com que eu parecesse grande. Bom! Só me faltava o principal: o dinheiro! E isso estava tirando meu sono. Na roça, se faz as refeições é cedo, quando se é adolescente, parece que sente mais fome ainda e se esse adolescente passou a noite quase toda acordado, aí não tem comida que farte. Pela manhã, um cheiro de bolo de milho, misturado ao cheiro de café, invadiu meu quarto. Levantei e por uma nesga que tinha abaixo da taramela vi minha mãe no tabuleiro mexendo requeijão e na mesa o bule de café, o bolo, uns pedaços de abóbora e mandioca. Fui pra lá, mas antes do café, escovei os dentes, lavei o rosto e fui pedir a bênção à minha mãe. Ela, adivinhando minha preocupação (mães sempre adivinham), chamou-me pra perto do tacho e com ar de quem tinha achado a solução, disse: por que você não pede o dinheiro emprestado pro seu Cazuza? Ele é seu amigo, talvez não cobre nem juro, nem estipule prazo para pagar. Quando vendermos a sua leitoa a gente paga pra ele. Entusiasmei-me com a ideia. Até ensaiei como seria a abordagem, como seria o modo de pedir. Tomei um banho rápido, um café às pressas, abracei minha mãe e me mandei pra casa do meu amigo. Seu Cazuza me saudou como sempre: um aperto de mão e um abraço forte. Antes que eu tomasse a iniciativa ele já bombardeou: você veio me pedir dinheiro emprestado (como é que ele advinhou? Será que minha mãe já tinha feito o “meio de Campo”?). Concordei envergonhado. E ele me perguntou: de quanto você precisa? Fiquei em silêncio por alguns segundos, depois tive que falar, pois tinha ido lá pra isso. É seu Cazuza, o senhor sabe, sábado é dia da festa e nós estamos sem dinheiro, de modo que eu preciso de um conto de réis, assim que eu vender minha leitoa... Joãovazinho (ele me interrompeu):
S. Paulo, 11/10/1958 www.cordeiropoeta.com.br CORDEIRO de ITIÚBA
Enviado por CORDEIRO de ITIÚBA em 08/08/2024
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